Pós Coronavírus

Ana Paula Nunes
7 min readMar 18, 2020

Documentário Pós Pandemia COVID-19 — Sherlocka Produções Utópicas

Sons de pássaros, risadas e passos correndo entre folhas secas. Câmera de cima mostra parques por todo o mundo lotados de pessoas se exercitando, aproximações em famílias brincando com crianças e foco em um homem de cabelos loiros brilhantes sorrindo para algumas crianças que jogam futebol no gramado.

Maycon escrito na tela.

— Eu tinha 9 anos quando o país entrou em quarentena. Lembro que fiquei muito feliz quando pararam as aulas. Para mim e para meus irmãos eram férias.

Cenas das escolas vazias por todo o mundo. Quadros limpos, bibliotecas fechadas, museus sem visitantes. Voz do Maycon surge no fundo das cenas.

— Alguns meses depois, foram nossos pais que vieram ficar em casa com a gente, ninguém mais podia ajudar pois os empregados tiveram que ir ficar com suas famílias.

Sons de pássaros e risadas param e começa a tocar no fundo “Time- Inception”. Filmagens mostrando isolamentos, rodas-gigantes paradas.

— Claro… não foram férias. — Diz Maycon.

Imagens de mercados vazios e alguns takes antigos feitos por celulares mostrando brigas em supermercados. Brigas em muitas línguas diferentes. Entra Gabriela na tela em um supermercado com prateleiras lotadas no fundo, sua cena e fala misturada com as cenas dos mercado na época pré isolamento.

— Quando começaram a nos mandar ficar trancados em casa, todos entraram em desespero por mantimentos. Não é que os mercados não estivessem preparados, o desespero e o egoísmo é que esvaziaram as prateleiras. Eu tinha 35 anos naquela época. Sim, foi meu vídeo sentada no corredor do mercado chorando desesperadamente que viralizou na internet. Eu não tinha nada para levar para meus filhos e o que gritava em mim é que não foi porque eu não tinha dinheiro. Eu tinha muito! Tive forças para trabalhar dias e dias até de madrugada para dar para eles o melhor, trabalhei pra isso, mas eu não tive força para brigar com todas aquelas pessoas pelos itens no mercado. Porque aquela mulher saiu com mais de 40 pacotes de arroz?

Gabriela se emociona de novo. A cena dela chorando no mercado e chorando agora se misturam. A imagem passa para aviões parados na pista, céus limpos, aeroportos vazios e o enquadramento chega a uma tatuagem de avião no ombro de Alice com longos cabelos ruivos olhando para uma pista de pouso.

— Só naquele ano eu perdi 4 viagens internacionais pelas quais batalhei apenas para realizá-las. Eu havia abdicado de coisas que nem ousaria contar aqui para ter aquelas partidas e chegadas. Eu não parti e não cheguei a lugar nenhum. Não perdi apenas todo dinheiro que juntei.

Corte de cena para David segurando um porta-retrato contra o peito e com duas crianças sentadas ao seu lado no sofá.

— O começo foi assim mesmo, ninguém tinha noção do que estava acontecendo e quem devia ter ignorou. Parecia alarde. Chamaram de histeria e as medidas vieram tarde demais para Bia. E para muitos outros, não é? Mas se nem eu que era seu marido e devia cuidar dela sabia que ela estava com uma doença autoimune, como eles iriam saber, não é? — Câmera fecha em seu rosto coberto de decepção. — Como?

Filmagens de hospitais negando exames, fechando as portas, filhos segurando pais idosos no colo. Izzy abraçando sua mãe Elyze.

— Eu pedi demissão e fui cuidar da minha mãe quando ela pegou o vírus. Ela só tinha a mim. — Izzy vira para a mãe tocando levemente em sua mão — Fala mãe, nos curamos, né?

Senhora de 78 anos levanta e sai da sala.

— Mãe! Mãe! Desculpa, ela não consegue lembrar por causa do Alzheimer. Ainda estamos sobrevivendo.

Recapitulação das reportagens anunciando a vacina contra o coronavírus falado em diversas línguas “Começa hoje a campanha de vacinação contra o coronavírus, para evitar aglomerações serão vacinados primeiro idosos e pessoas do grupo de risco já cadastradas na OMS”.

Gabriela: — Todos ficaram surpresos quando não houve brigas por causa das vacinas. Em menos de 4 meses quem quis se vacinou. Quem não quis também. O isolamento começou a se desfazer em acolhimento. O que vimos depois de reabrir as portas parecia mais um sonho utópico. Os vizinhos se cumprimentavam. Na rua todos sorriem para todos até hoje! Estamos nos preocupando uns com os outros! Quem são essas pessoas?

As imagens mostram com mais clareza o contraste de antes, pessoas andando mexendo no celular, e cenas atuais de poucas pessoas com celular na mão.

David: — Se eu contasse isso naquela época iriam rir na minha cara, mas na metade da quarentena acabaram as redes sociais. A gente não sabia o que estava acontecendo na vida uns dos outros, ninguém postava o que comia no Instagram, ninguém brigava por política no Facebook, dancinhas de TikTok perderam a graça e o Twitter, imagine só, servia mesmo apenas para ler as notícias de curas ou óbitos, ninguém reclamava mais de nada por lá.

Alice: — Graças a Deus pela internet. Claro que no começo tudo era motivo de piada, afinal, o vírus chegou na geração dos memes. Mas em poucos meses de isolamento as redes sociais não riam mais da desgraça dos outros, porque passou a ser delas também.

Gabriela: — E com um pouco mais de tempo o que também ficou em alta foram as ligações. Quem diria! Telefones voltaram a servir como telefones. Queríamos realmente ouvir as vozes de nossos familiares!

As imagens mostram cenas dos encerramentos de isolamento. Pessoas voltando ao trabalho, escolas reabrindo, parques enchendo, igrejas com pessoas em pé de tão lotadas.

Maycon: — Não foi muito tempo, cara! Contando agora faz parecer que ficamos mais de 3 anos assim. O peso foi enorme e de fato pareceram 30 anos para nosso coração, para a economia mundial. Nem você esperava que a marca da maçãzinha ia falir, man! — Maycon brinca e ri para o câmera.

Corte para Gabriela com vestido de noiva rindo para a câmera com uma taça de champanhe

— Namorar? — muitas risadas e cenas do casamento com a voz dela — Dava! O ser humano sabe ser criativo em meio ao ócio, não faltaram aplicativos para conhecermos uns aos outros.

Cena volta para Alice.

Alice: — É! Assim, o que realmente bombou até não aguentarmos mais foi YouTube e todo tipo de plano para filmes, livros e áudio-books. Eu sempre quis tempo pra ler, li toda minha estante e mais um pouco. Mas eu preferia não ter lido nem uma página do que tudo isso ter acontecido.

As imagens agora são dos vídeos de pastores pregando no Youtube mesclando com imagens atuais de igrejas lotadas.

David: — Um dia um amigo me mandou o link para a pregação na igreja dele. Eu e as crianças não tínhamos mais nada pra fazer, zeramos todas os desenhos do Netflix. Vimos essa pregação uma vez e se tornou uma rotina naqueles três anos. — Cenas do batismo das gêmeas aparece enquanto David retoma — Queria que a mãe delas estivesse aqui. Quantas vezes ela me chamou pra ir pra igreja e eu nunca fui com ela.

As imagens dos parques lotados de famílias retornam e voltam para Maycon.

— Não estou agradecendo por aquela desgraça, man! Eu só estou te dizendo que eu não conhecia meus pais até então. Só os via domingo e eles já estavam cansados demais. Depois eu soube que os papéis para assinarem o divórcio já estava pronto. Fomos obrigados a ficar juntos e eles só não estão aqui agora porque estão viajando com meu irmão. — Maycon dá uma gargalhada— Eu devia ter ido, né? Mas a Miranda fará a prova da faculdade amanhã, estou ajudando.

Izzy: — Ajudar! — As imagens mostram ações das mais simples de dia a dia e de gráficos exibindo o enorme crescimento em voluntariados pelo mundo enquanto Izzy prossegue — Durante a quarentena só sabíamos o que fazíamos e o que faziam por nós, mas só quando saímos é que vimos que houve uma transformação em larga escala. Em algum momento daqueles três anos o egoísmo deixou de ser suficiente.

Gabriela colocando produtos no carrinho de compras: — No prédio em que eu morava na quarentena, todos começaram a se doar uns aos outros, ainda que sem contato físico. Na minha porta recebi pacotes de arroz. Não passamos fome. Além do mais, nem preciso mencionar que todos aprenderam pra sempre a tossir e proteger os outros e lavamos as mãos muito bem até hoje.

Imagem Izzy e sua mãe andando em direção a uma igreja.

Izzy: — A desigrejada mais desesperada por voltar ao corpo! Eu mesma! É, eu e toda população de desigrejados do mundo. Foi não poder mesmo mais cantar louvores com irmãos em uníssono, não partilhar da santa ceia, não receber abraços das senhorinhas no final do culto, não reclamar pela demora para os jovens decidirem onde iríamos comer… não poder ter mais essas coisas me deixou desesperada para tê-las de volta!

A câmera acompanha Izzy entrando com sua mãe pelas portas de uma igreja lotada. A câmera passa por elas e vai sozinha se aproximar do púlpito fechando no pastor.

David: — Não voltei para o escritório, fui ordenado. Fiz parte do seminário online na quarentena e parte presencial quando saímos.

Corte! Cena do céu cortado por incontáveis riscos brancos que os aviões fazem no céu de Londres.

Alice: — É claro que eu ainda quero viajar muito, mas, por ora, eu já estou onde preciso! Achei que quando toda aquela dor acabasse eu ia querer correr o mundo todo em liberdade. — Alice toca a tatuagem de avião e sorri para a câmera. — Sabe…Liberdade é poder segurar as mãos de nossos irmãos.

Um par de mãos enrugadas e delicadas em quadro bem fechado. Abrindo aos poucos, a imagem mostra essas mãos preparando um café. Água passando pelos grãos moídos. Fumaça. Olhos marejados. Xícara. Ela sente o aroma do café, olha no fundo dos seus olhos, para a câmera.

Elyze: — Gosto que Izzy esteja comigo, estou cuidando dela. O que eu lembro é que antes disso ela não vinha mais pra casa.

FIM.

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Ana Paula Nunes

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